segunda-feira, 13 de abril de 2009

The way the way I see it (ou "o caminho como eu o vejo")



Aviso aos leitores otimistas deslumbrados: leiam ignorando as partes em itálico cinza.


Acordo as 6 horas, depois de uma boa noite de sono. É a primeira em 3 dias.
Levanto, faço e tomo meu café, pego uma banana e saio em direção ao meu serviço - palavra que origina-se de servil, servidão, escravatura. Adequado. Faltam 15 minutos para as sete horas.
Minha jornada tem 7 quilômetros, os quais percorro a pé, para fazer exercício físico, do qual preciso para continuar saudável o suficiente para continuar dando lucro para meus senhores (do feudo e do engenho). Já na esquina de casa, o primeiro kinder ovo (as lixeiras do Fogaça) a primeira montanha de lixo. 
Ligo a música e coloco os fones, a rua está pouco movimentada a esta hora, ainda consigo ouvir em um volume civilizado. Ando mais cinco quadras e encontro um primeiro mendigo de muitos, dormindo em uma pracinha, livre e imperturbado, seu merecido sono reparador. Chego à uma grande avenida, aumento o volume da música até o máximo e, mesmo assim, não consigo distinguir o que está tocando. Vejo o arroio que passa no meio da avenida, com sua água espumada de tão imunda e graciosas garças brancas pescando, tingidas de cinza pela sujeira do ambiente de onde tiram seu sustento.
Continuo a caminhada, passando ao lado de uma sub-estação (foda-se a gramática) de energia, olhando atentamente para o chão, feito um porco chafurdando ou um cavalo bitolado, admirando o movimento frenético das formigas cortadeiras e prestando o máximo de atenção para desviar dos cacos de garrafa quebrados, do lixo e dos buracos da calçada. No muro em frente, se vê um grafite tosco protestando: "O preço da luz é um absurdo!" Mais alguns metros adiante, passo por uma parada de ônibus, totalmente destruída, onde algumas pessoas aguardam sua cara, suja e atrolhada, condução.
Saio dessa avenida e entro por uma rua novamente calma, onde diminuo o volume da música. Pessoas passeiam calmamente com seus cachorros, não se importando em juntar os excrementos dos animais, indiferentes à sujeira e ao fedor que produzem. Em frente a uma casa abandonada, um sofá velho repousa e, sobre e ao redor dele, mais quatro mendigos. Mais alguns metros e estou novamente em uma movimentada avenida. Aumento o volume. Passo em frente a um restaurante, onde o proprietário lava e esfrega inutilmente a calçada sebosa e fétida, tingida por excrementos animais e humanos. Chego a um viaduto, onde vivem (dormem, comem, lavam seus trapos, defecam e achacam os transeuntes) pelo menos cinco grupos de moradores de rua, com seus muitos e sarnentos cachorros. Passo rapidamente, tentando não respirar o repugnante mau cheiro e, ao atravessar a rua preciso parar bruscamente para não ser atropelado por um motorista mal educado que simples ou propositadamente ignora a existência de sinalizadores luminosos de direção.
Chego na calçada de um grande hospital, imponente no tamanho, mas minúsculo para atender à demanda de uma população regional que beira os 5 milhões de homo sapiens. Mais uma vez paro bruscamente para não ser atropelado, desta vez por um ciclista desgraçado, que venta suas tranças em cima da calçada, tirando finos dos sonolentos transeuntes. Penso em abrir o canivete e enterrá-lo em sua perna. Fico na imaginação. Logo em seguida, mais uma horda de mendigos dormem tranquilamente sob a marquise de uma lotérica, cujo proprietário lava e escova sem resultado o chorume que cobre o passeio.
Mais alguns metros e um outro hospital, cercado por filas de doentes, montanhas de lixo e catadores com suas carroças. Entro em outra avenida, onde tenho dificuldade para atravessar, pois o congestionamento já se forma e hordas de motoqueiros aceleram por entre os carros parados e, às vezes, também sobre as calçadas. Chego a um enorme parque. Ao entrar, vejo mais uma gangue de catadores e suas carroças abarrotadas de lixo dificultando a passagem dos esportistas matutinos em direção à pista de corrida. Alguns passos à frente, dois mendigos dormem envoltos em papelão sobre um belo gramado que circunda um sujo e mal cuidado jardim de tema japonês. 
Ainda com a música alta, escuto grunhidos e chiados - um dos mendigos tenta chamar minha atenção - abro o canivete e continuo a caminhada sem dar importância aos guturais sons. Logo não os escuto mais, pois ele desiste de mim, vendo uma senhora com seu cachorro, que lhe parece uma presa mais fácil. Vejo novamente pessoas passeando com seus cães, mais uma vez ninguém se importa em coletar os dejetos por eles produzidos.
Saio do parque e atravesso com bastante dificuldade outra grande avenida. Não há passarelas, apenas uma mísera sinaleira de pedestre, posicionada exatamente num ponto de difícil acesso para as pessoas e onde atrapalha bastante o fluxo dos veículos. Chego ao campus de uma grande universidade, com seus prédios antigos, imponentes e desgastados pelo tempo, sem sinal de conservação ou mesmo reparos básicos. Uma caixa d'água escorre cachoeiras de água tratada e paga com o dinheiro dos contribuintes, criando um belo efeito visual e fazendo com que os pedestres tenham que desviar seu caminho para a sarjeta de outra grande e movimentada avenida. Mais uma mal posicionada sinaleira de pedestres e chego ao centro.
Sob um grande viaduto, atravesso a rua novamente com dificuldade e tento não respirar o fedor que exala de mais um grupo de mendigos. Na outra extremidade deste viaduto há outro grande e exaurido hospital, que, por ser o único centro de atendimento especializado no estado, concentra diariamente o movimento de pacientes, que chegam em centenas de ambulâncias lotadas, oriundos de cidades em um raio de trezentos quilômetros.
Faltam 15 minutos para as oito horas da manhã, já caminho há uma hora. 
Desviando como possível das pessoas irracionalmente apressadas, da mira dos cagalhões das pombas, dos pingos nojentos que caem das marquises, do chuvisco enferrujado dos ar condicionados, dos alojamentos de mendigos que vivem nas praças, dos excrementos humanos e animais, dos roedores e insetos mortos (e vivos) pelas calçadas, dos crentes que pregam berrando suas profecias, dos panfleteiros que lhe enfiam ofertas nas fuças, dos vendedores de tudo quanto pode se imaginar, dos ensurdecedores negociadores de ouro e cabelos, dos buracos nas calçadas, dos lixeiros sem educação e seus pontiagudos apetrechos, das tribos de pseudo-estudantes emos, playboys, prostitutinhas baratas, ratas de academia, manos e pagodeiros, dos estúpidos ciclistas carteiros e entregadores de água mineral, dos índios fedidos e barulhentos e suas crianças, dos caminhões de transporte de valores e seus seguranças com escopetas, dos artesãos camelôs, dos cegos e aleijados com seus nervosos bastões, das pratibandas de prédios históricos abandonados que ameaçam cair, das variadas, fedidas e baixas tendas de comida, chego à esquina do meu trabalho.
Do outro lado da rua, em frente a uma repartição pública, uma fila absurda de cem metros dos que buscam a pífia, porém gratuita, assistência jurídica provida pelo estado.
Mais alguns metros e estou no elevador. Momentos depois, estou na minha mesa, uma hora e vinte minutos depois do início da estressante jornada. E o ambiente parece uma sauna, porque o ar condicionado ainda está desligado... mas isso já foi assunto de outro post...


Nenhum comentário: